17/11/2016
Comunicado: As gaivotas são realmente uma praga?
Perante as alarmantes notícias sobre o abate e envenenamento de gaivotas nos aterros sanitários dos Açores, sendo esta espécie qualificada frequentemente como uma “praga” pelos responsáveis destes aterros e também pela comunicação social, as seguintes Associações e Grupos ecologistas da região, assim como diversas pessoas a título individual, querem fazer público e manifestar o seguinte:
AS GAIVOTAS SÃO REALMENTE UMA PRAGA?
O que é realmente uma praga?
O conceito de praga tem vindo a evoluir no tempo, passando de ser uma simples palavra de uso na linguagem comum a ser actualmente um conceito com um significado técnico e científico muito mais rigoroso.
Tradicionalmente entende-se como praga qualquer tipo de organismo capaz de causar danos consideráveis nas produções agrícolas ou florestais. Estes organismos podem ser animais, plantas ou microorganismos, sendo então habitual falar, respectivamente, de pragas animais, de ervas daninhas ou de doenças das plantas.
O conceito de praga, no entanto, tem-se alargado posteriormente a outros tipos de danos, não apenas às culturas agrícolas ou florestais, e também inclui actualmente os danos causados à saúde humana, aos animais domésticos ou a determinados interesses económicos.
Se antigamente os organismos (animais, plantas ou microorganismos) eram considerados de forma simplista como bons ou maus segundo a sua capacidade de converter-se em pragas, actualmente o conceito de praga não está centrado no organismo mas na situação na qual ele acaba por se converte em praga. Assim, um organismo poderá ser benéfico num determinado lugar e poderá ser, ao mesmo tempo, uma praga noutro lugar diferente. Isto é, não existem espécies-praga, mas espécies que em determinadas condições se convertem em praga.
E em que condições um organismo se converte em praga? Habitualmente isto acontece naquelas condições em que um determinado organismo passa a multiplicar-se de forma rápida e sem controlo, criando subitamente uma superpopulação que é causadora de danos. Ora, estas condições são precisamente as que caracterizam às espécies exóticas invasoras. Estas espécies, introduzidas pelo homem, têm exactamente como característica crescer e multiplicar-se sem controlo por não existir no ecossistema no qual foram introduzidas nenhum factor de equilíbrio sobre a sua população, como poderia ser por exemplo a existência de predadores, de competidores, de parasitas ou de doenças. Assim, as espécies exóticas invasoras facilmente podem converter-se em praga.
Muito mais raras são as condições nas quais uma espécie nativa pode converter-se também em praga, e implicam que esta espécie tenha uma alta taxa de natalidade capaz de criar um aumento súbito da sua população, como acontece por exemplo na África com as pragas nativas de gafanhotos. Estando as espécies nativas em equilíbrio com o seu ecossistema, esse aumento súbito acabará no entanto por ser anulado naturalmente, registando-se assim apenas uma situação de ciclos periódicos de aumento da sua população.
As gaivotas são uma praga?
A Gaivota-dos-Açores (Larus michahellis atlantis) é uma subespécie de gaivota endémica do nosso arquipélago. É portanto uma subespécie que só existe nas ilhas dos Açores (alguns autores, no entanto, incluem nesta subespécie as gaivotas existentes na Madeira e nas Canárias, enquanto outros elevam a Gaivota-dos-Açores à categoria de espécie independente). Calcula-se que exista uma população total de mais de quatro mil casais reprodutores de Gaivota-dos-Açores, distribuídos pelas diferentes ilhas açorianas [1].
A Gaivota-dos-Açores não é, portanto, uma espécie exótica invasora que cresça sem controlo, mas antes uma espécie nativa cuja população está em equilíbrio com o ecossistema do qual faz parte. E tendo ainda uma taxa de reprodução bastante baixa, sem capacidade de ter aumentos rápidos nem súbitos da sua população, não tem objectivamente condições para converter-se ou ser considerada alguma vez uma praga.
O mesmo pode dizer-se de outras espécies e subespécies de aves nativas endémicas dos Açores, como o Pombo-torcaz (Columba palumbus azorica), o Melro-preto (Turdus merula azorensis) e o Estorninho (Sturnus vulgaris granti). Estas espécies não têm capacidade de ser praga, apesar de erroneamente serem muitas vezes referidas como tal na comunicação social açoriana. Também não é uma praga o priolo (Pyrrhula murina), que no passado foi levado quase ao extermínio por ser considerado como tal nas culturas de laranja. Apesar de que todos eles podem causar ou causam danos pontuais em determinadas culturas, nem têm as características nem ocasionam um volume de danos suficientes como para poder ser alguma vez considerados uma praga.
A população de Gaivota-dos-Açores, no entanto, tem sofrido ultimamente um aumento significativo no arquipélago como consequência do desequilíbrio criado pelo homem no seu ecossistema. A incorrecta e negligente gestão dos resíduos sólidos urbanos tem proporcionado a esta espécie um aumento importante de alimento disponível. Assim, nas ilhas de maior dimensão as gaivotas passaram a frequentar principalmente lixeiras e aterros para se alimentar, sendo nelas actualmente o lixo a sua principal fonte de alimentação. Com isto a população de gaivotas tem vindo ultimamente a crescer, estimando-se ter aumentado até num 60 % em duas décadas [1].
As gaivotas, para além dalguns incómodos pontuais, na realidade não ocasionam danos consideráveis ao ser humano. No entanto, a nível sanitário, há uma importante preocupação pela possível transmissão de doenças que possam apanhar nas lixeiras e nos aterros mal geridos onde se alimentam. Também, a nível natural, é preocupante o possível aumento da pressão de predação que podem exercer sobre outras aves nativas, ou ainda, por exemplo, o possível aumento da eutrofização da Lagoa do Fogo, lugar onde está situada a principal colónia de cria destas gaivotas.
O que fazer com as gaivotas?
O aumento da população da Gaivota-dos-Açores é consequência do desequilíbrio criado pela negligente gestão dos resíduos sólidos urbanos. Uma gestão eficiente dos resíduos, onde a fracção orgânica do lixo fosse recolhida e tratada separadamente, sem ir parar às lixeiras ou ao aterro, eliminaria esta fonte extraordinária de alimentação das gaivotas e sua população voltaria automaticamente a níveis normais. Outras melhoras possíveis, como o tratamento biológico dos resíduos ou uma melhor utilização dos aterros, reduziria igualmente a população actual de gaivotas. O problema não está portanto em saber o que fazer com as gaivotas senão em corrigir os maus hábitos e o desequilíbrio causado pelo homem no ambiente e nos ecossistemas das ilhas.
Entretanto, caso se queira insistir por mais tempo num modelo erróneo e insensato de gestão dos resíduos, existe a possibilidade de tomar algumas medidas sobre a população de gaivotas que, sem chegar nunca a solucionar as causas, podem minorar transitoriamente os possíveis danos que possam causar. Estas medidas, especialmente por se tratar de uma subespécie endémica dos Açores, devem ser obrigatoriamente realizadas dentro das normas éticas que merece uma espécie única da nossa ornitofauna. Deste tipo de medidas pode ser um bom exemplo a esterilização de ovos de gaivota que tem vindo a realizar-se na colónia da Lagoa do Fogo e que tem conseguido reduzir em parte a natalidade desta espécie.
Existem no entanto na nossa região numerosos exemplos recentes de uma total falta de ética no tratamento da população de gaivotas, realizados mais ou menos secretamente nos aterros da região e também fora deles. É disto um vergonhoso exemplo a opção de disparar e abater gaivotas no aterro da ilha Terceira, onde recentemente as gaivotas foram mortas às centenas (ou aos milhares se acreditamos no anunciado pelo próprio aterro) [2]. Ou também a opção de colocar iscos envenenados no aterro de São Miguel com um veneno tão perigoso como o pentobarbital sódico, utilizado na eutanásia animal e humana, que tem matado recentemente não só gaivotas, como também outras aves nativas e até vários cães [3].
Olhando para estas acções que atentam de forma vergonhosa contra a natureza, realizadas ou autorizadas pelas administrações regionais e locais, percebemos que o respeito pela fauna nativa continua a ser uma miragem na nossa região. E isto num momento no qual se faz propaganda dos Açores como uma região moderna e sustentável e tenta atrair-se a ela o chamado turismo verde e de natureza.
Há ainda cargos públicos na nossa região que consideram que as gaivotas são “ratos com asas”. E até os próprios deputados regionais, numa recente Resolução de 2015 [4], chegam a equiparar legalmente espécies endémicas como são as gaivotas, os pombos e os melros a espécies exóticas invasoras como são os ratos ou as térmitas, o que diz muito do seu respeito pela fauna dos Açores. Afinal, apetece dizer que a pergunta não será o que é que nós podemos fazer com as gaivotas, senão o que é que as gaivotas e a natureza poderão fazer connosco.
REFERÊNCIAS
[1] Neves, V.C., N. Murdoch, R.W. Furness. 2006. Population status and diet of the Yellow-legged Gull in the Azores. Arquipélago. Life and Marine Sciences 23A: 59-73.
[2] Telejornal. RTP Açores, 11/05/2015.
[3] Produto usado no controlo de gaivotas nos Açores pode ter implicações na saúde pública. Público, 28/10/2016. https://www.publico.pt/local/noticia/produto-usado-no-controlo-de-gaivotas-nos-acores-pode-ter-implicacoes-na-saude-publica-1749131
[4] Plano estratégico de combate às pragas dos Açores e controlo de densidade de espécies protegidas. Resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores n.º 14/2015/A.
ASSOCIAÇÕES E GRUPOS ECOLOGISTAS:
Amigos dos Açores – Associação Ecológica
Amigos do Calhau – Associação Ecológica
Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza
Coletivo Açoriano de Ecologia Social
Avifauna dos Açores
APOIOS INDIVIDUAIS:
Alexandra Manes
Andrea Fernandes Simões Ribeiro
Ana Margarida de Medeiros Henrique
Ana Teresa Fernandes Baia Simões
António Eduardo Soares de Sousa
Carlos de Bulhão Pato
Clara Rego Costa Oliveira Cymbron
David M. Santos
Erica Del Rei de Sá Perello
Filipe de Chantal Borges Sancho
Gonçalo de Portugal de Almeida Tavares
Helena Câmara
Helena Melo Medeiros
Helena Primo
José Melo
Luís Noronha Botelho
Maria do Carmo Barreto
Maria Margarida Soares de Sousa
Miguel Fontes
Paula Costa
Rita Patuléia Pereira Bernardino
Rui Soares Alcântara
Sérgio Diogo Caetano
Sofia Cassiano de Medeiros
Teófilo José Soares de Braga
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