18/09/2024

Sustentabilidade da vitivinicultura açoriana posta continuamente em causa pelos próprios agricultores


As recentes declarações públicas de alguns responsáveis do sector vitivinícola e do Governo Regional dos Açores colocam reiteradamente em causa a pretendida sustentabilidade da cultura da vinha nos Açores, ameaçando gravemente, de forma incompreensível, o futuro do próprio sector.

É evidente que a sustentabilidade de um sector económico, qualquer que seja, implica necessariamente um equilíbrio com o ambiente, respeitando as espécies de flora e fauna nativas e não colocando nunca em causa a sua existência. No entanto, manifestamente contra este princípio, têm-se sucedido nas últimas semanas declarações irresponsáveis e despropositadas tanto por parte de alguns responsáveis do sector vitivinícola como por parte do governo regional. Nessas declarações, alguns viticultores reconhecem que as condições meteorológicas e as doenças foram as principais responsáveis pela baixa produção esperada para o presente ano. Mas não deixam logo, como em anos anteriores, de acusar das suas perdas a espécies de aves nativas, protegidas por lei, como o melro-preto, o pombo-torcaz ou a rola-turca, das quais pedem directamente o abate.

As declarações do sector e do governo

O presidente da Comissão Vitivinícola Regional, Vasco Paulos, referiu existirem contínuos “ataques das aves” e defendeu a caça e o abate dos “pássaros”, que considera como pragas, por causarem estragos e haver uma população muito elevada [1]. No mesmo sentido, a Associação de Viticultores dos Açores, através de Fortunato Garcia, falou de níveis assustadores na destruição provocada pelos “pássaros” e pediu a caça ao melro-preto, ao pombo-torcaz e à rola-turca, mesmo durante a época reprodutora, por considerar que são pragas e causadoras de milhares de euros de perdas, afirmando também que “estamos a ser atacados” e que há uma “invasão” destas aves [2].

De forma semelhante, o presidente da Cooperativa Vitivinícola da Ilha do Pico - Picowines, Losménio Goulart, referiu-se às espécies de aves nativas como “espécies invasoras” que muito prejudicam a produção dos vinhos e que devem ser abatidas [3]. Igualmente, o presidente da Adega Cooperativa dos Biscoitos, Cecílio Faustino, defendeu também a caça das aves nativas por serem responsáveis por consideráveis prejuízos (citando entre elas erroneamente o pombo-trocaz, uma espécie que só existe na Madeira) [4].

O Governo Regional, através do Secretário Regional da Agricultura, António Ventura, admitiu poder autorizar a caça destas aves nativas, coisa que não é possível pelo facto de serem espécies protegidas, admitindo também haver um excesso de população, uma afirmação para a qual evidentemente não apresentou qualquer tipo de provas. Referiu ainda, de forma surpreendente, poder haver, por causa das aves nativas, um prejuízo importante para todas as culturas, incluído o milho, as pastagens e outras culturas para alimentação animal. Para além disso, contemplou a possibilidade da introdução de espécies exóticas de águias nas nossas ilhas e o alargamento dos períodos de caça, que logicamente não existem, das referidas aves [5].

As aves em causa

Num contexto insular como o dos Açores não é possível falar nunca de excessos de população de aves nativas, caso não haja uma propositada intervenção humana. Pelo contrário, as suas populações estão sempre ameaçadas e fragilizadas pela escassa dimensão do território, pelo seu isolamento e fragmentação em nove ilhas e pela progressiva degradação dos seus habitats. Ora, são bem conhecidas as provas de que os seus efeitos sobre as culturas de vinha não são significativos. Um estudo recente realizado com câmaras revelou que as principais responsáveis pelas perdas não são as aves nativas, mas sim duas espécies exóticas invasoras: a lagartixa-da-Madeira (Teira dugesii) e o pardal-doméstico (Passer domesticus), para além das várias espécies de ratos, também eles invasores [6].

O melro-preto-dos-Açores (Turdus merula azorensis) é considerado, na realidade, como uma espécie benéfica para a agricultura por alimentar-se ao longo do ano de insectos, lagartas, lesmas e caracóis. E na agricultura biológica é referida como uma espécie auxiliar no combate às pragas [7]. Para além disso, é uma espécie de comportamento territorial, não existindo a possibilidade, portanto, de apresentar altas densidades de indivíduos.

O pombo-torcaz-dos-Açores (Columba palumbus azorica) apresenta uma população muito reduzida como consequência da progressiva perda do seu habitat natural, a primitiva floresta laurissilva, e da caça ilegal. A densidade da sua população é muito baixa, com apenas 5 aves/km2 na maioria das ilhas. Apresenta ainda, para além disso, um comportamento territorial durante a época reprodutora, que vai de fevereiro a setembro [8,9,10].

Um caso especial é a rola-turca (Streptopelia decaocto), uma espécie nativa chegada aos Açores há apenas uns quinze anos, apresentando desde então uma rápida expansão pelo arquipélago. São pouco conhecidos os seus hábitos, mas parecem utilizar as mesmas fontes de alimentação que o pombo-das-rochas, como podem ser, por exemplo, as silagens e rações animais desprovistas de proteção.

É realmente sustentável a vitivinicultura açoriana?

Considerando tudo o que foi referido, pode considerar-se sustentável um sector económico cujos máximos responsáveis defendem continuamente a caça e o abate de espécies de aves nativas, protegidas por lei, e únicas dos Açores? Pode considerar-se sustentável um sector que qualifica aves nativas como pragas e espécies invasoras que atacam e destroem as vinhas?

Em completa incoerência com as suas afirmações, como é possível, ao mesmo tempo, criar uma nova associação de viticultores na Terceira que tem entre os seus objetivos promover a sustentabilidade ambiental e valorizar a viticultura como património natural [11]? Ou defender para as ilhas do Triângulo uma candidatura a Bio-Região que se baseia na sustentabilidade e aposta pela agro-ecologia [12]? Ou reivindicar a existência da Paisagem Protegida da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, cuja candidatura a património mundial da UNESCO assegurava a produção vitícola numa vertente artesanal e ecológica, sustentável e em harmonia com a natureza?

Podem facilmente entender-se as queixas dos agricultores naqueles anos em que a colheita não é boa. Mas não se podem entender, sob esta ou qualquer outra desculpa, mensagens extemporâneas de ódio à natureza e às aves nativas, pedindo a sua eliminação. E muito menos ainda pode entender-se que o governo regional, ignorando propositadamente dados objetivos e científicos recolhidos por ele próprio, siga logo nesta mesma conversa, algo unicamente compreensível sob uma lógica eleitoralista.

Mais encorajadora, pelo contrário, é a acção individual dalguns viticultores, que começaram, aparentemente com grande sucesso, a utilizar sacos de rede para proteger as uvas [13], ou ainda daqueles dispostos a utilizar canhões para afugentar as aves [14].

Desta forma absurda, grande parte do sector vitivinícola, com a ajuda do Governo Regional, parece estar a trabalhar insistentemente a favor do seu próprio desprestigio, negando uma sustentabilidade ambiental que, por outro lado, tanto apregoa. Uma sustentabilidade que, na realidade, tão necessária é para o sector e que tantos benefícios que pode proporcionar-lhe a médio e longo prazo.



ASSOCIAÇÕES ASSINANTES:

Amigos dos Açores – Associação Ecológica
Amigos do Calhau – Associação Ecológica
IRIS – Associação Nacional de Ambiente, Núcleo Regional dos Açores
APPAA – Associação para a Promoção e Proteção Ambiental dos Açores
Avifauna dos Açores




PESSOAS ASSINANTES (25 set):

David M. Santos
Teófilo Soares Braga
Rui Coutinho
José Pedro Medeiros
Luís Noronha
João Carlos Pacheco
Eduardo Santos
Helena Medeiros
Rui Medeiros
Mário Maciel
Maria G. Ramos
Paula Costa
João Rosa
Fernando Melo
Helena Carreiro
Raúl Sousa
Maria das Neves Oliveira
Cacilda Medeiros
Carmo Barreto
Gabriela Mota Vieira
Paulo A.V. Borges
Carmélio Rodrigues
Mário Moura
Bernardette Oliveira
Rita Norberto
Maria Inês Vargas
José Almeida
Alexandra Manes
Boanerges Melo
Marta Dutra
Pedro Neves
José Azevedo
Maria da Anunciação Ventura
Maria Antónia Fraga
Octávio Alberto Castanha
Maria José Aurélio
José de Andrade Melo
Pedro Leite Pacheco



REFERÊNCIAS:

[1] Diário Insular 27/07/2024, Açoriano Oriental 02/08/2024.
[2] Ilha Maior 02/08/2024.
[3] Açoriano Oriental 29/07/2024, Ilha Maior 30/08/2024.
[4] Diário Insular 27/07/2024.
[5] Diário Insular 23/07/2024, Jornal do Pico 14/08/2024.
[6] Lamelas-López, L. & Ferrante, M. 2021. Using camera-trapping to assess grape consumption by vertebrate pests in a World Heritage vineyard region. Journal of Pest Science 94:585–590. https://doi.org/10.1007/s10340-020-01267-x
[7] Jorge Ferreira (coord.). As bases da agricultura biológica: I - Produção vegetal (Segunda edição). EdiBio Edições.
[8] Almeida, J., Catry, P., Encarnação, V., Franco, C., Granadeiro, J.P., Lopes, R., Moreira, F., Oliveira, P., Onofre, N., Pacheco, C., Pinto, M., Pitta Groz, M.J., Ramos, J. & Silva, L. 2005. Columba palumbus Pombo-torcaz. Em: M.J. Cabral et al. (eds), Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, p. 329. Instituto da Conservação da Natureza, Lisboa.
[9] Dickens, M. & Neves, V. 2005. Post-breeding density and habitat preferences of the Azores Woodpigeon, Columba palumbus azorica: an inter-island comparison. Arquipélago. Life and Marine Sciences 22A: 61-69.
[10] Fontaine, R., Neves, V.C., Rodrigues, T.M., Fonseca, A. & Gonçalves, D. 2019. The breeding biology of the endemic Azores Woodpigeon Columba palumbus azorica. Ardea 107: 47–60. doi:10.5253/arde.v107i1.a4
[11] Diário Insular 24/08/2024.
[12] Açoriano Oriental 04/08/2024.
[13] RTP Açores 23/08/2024. https://acores.rtp.pt/local/vitivinicultura-produtor-da-terceira-tem-solucao-para-as-pragas/
[14] Jornal do Pico 14/08/2024.





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