03/10/2024

Continua o abate ilegal de aves protegidas na vitivinicultura açoriana?


Perante os desmentidos sobre o impacto das aves nativas na viticultura, impacto magnificado e levado até ao absurdo por alguns representantes dos vitivinicultores açorianos, foi publicada no jornal Ilha Maior (27/09/2024) a fotografia de uma ave esventrada, supostamente um pombo-torcaz, com a declarada intenção de servir de prova de que esta espécie se alimenta de uvas. No entanto, esta fotografia, ao que parece, apresentaria na realidade a prova de um abate ilegal desta espécie protegida.

O abate ilegal de espécies nativas não é, infelizmente, uma notícia rara no âmbito da vitivinicultura. Num relatório apresentado ao Governo Regional em 2018 é referido o resultado de um inquérito feito a trinta vitivinicultores da ilha do Pico [1]. E neste inquérito os vitivinicultores referem a utilização frequente de métodos letais contra aves nativas, como o uso de veneno, de redes, o abate a tiro ou a destruição de ninhos.

A situação de desrespeito pela legalidade é ainda mais grave pelo facto de sucessivos governos regionais, em manifesto incumprimento da lei, terem autorizado a alguns vitivinicultores da Terceira e do Pico, nomeadamente nos anos 2013, 2014, 2015 e 2023, o abate com arma de fogo de diferentes aves nativas como o pombo-torcaz-dos-Açores (Columba palumbus azorica), o melro-preto-dos-Açores (Turdus merula azorensis), o estorninho-dos-Açores (Sturnus vulgaris granti) e a rola-turca (Streptopelia decaocto) [2].

Todas estas acções e autorizações são, de facto, completamente injustificáveis sob todos os aspectos. Neste sentido, um relatório do ano 2023 sobre o impacto das aves nativas sobre as vinhas, realizado pela própria Direção Regional do Ambiente [3], chega às seguintes conclusões:

1) Os dados recolhidos sobre as populações destas aves “encontram-se alinhados com os resultados dos censos efetuados em 2022 e com a evolução registada nos mesmos ao longo dos anos”, que não mostram nenhum aumento destas espécies (com excepção da rola-turca).
2) Considera-se que “eventualmente, estará a haver por parte dos produtores uma confusão de identificação entre as espécies pombo-torcaz e pombos-das-rochas”.
3) Não se verifica “a necessidade de controlo de densidade populacional do melro-preto, uma vez que as observações efetuadas não revelam uma expressão relevante”.

Os sucessivos censos realizados entre os anos 2014 e 2022, recolhidos neste mesmo relatório, não deixam nenhuma dúvida. Por exemplo, a ilha do Pico apresenta os menores valores de abundância de pombo-torcaz de toda a região. E isto considerando que a sua abundância nos Açores é, já de si, muito baixa e preocupante. Estas aves, que só têm de forma geral uma cria por ano, apresentam na nossa região taxas de sucesso reprodutivo muito baixas. Só um em cada dez ovos chega a produzir um juvenil, e, para além disso, mais de metade dos indivíduos juvenis pode não sobreviver ao primeiro ano de vida [4].

Também os diferentes estudos realizados com câmaras sobre os impactos que as aves nativas têm sobre a vinhas não deixam nenhuma dúvida. Os resultados apontam sempre para que estes impactos não são significativos e que, na realidade, os maiores danos são produzidos por espécies exóticas invasoras como a lagartixa-da-Madeira (Teira dugesii), o pardal-doméstico (Passer domesticus) e os ratos (Rattus sp.).

Em conclusão, a vitivinicultura açoriana, seja pela inércia de comportamentos do passado, seja por falsas ideias e desconhecimento da realidade, seja por uma excessiva dependência dos subsídios e a consequente necessidade de salientar todas as perdas, parece estar a ir por um caminho que a pode levar à sua própria ruína. Sem manifestar um constante e escrupuloso respeito pela natureza, que futuro podem aguardar os produtos que são fruto desta atividade tão tradicional e, de facto, tão marcante nas nossas ilhas?





REFERÊNCIAS:
[1] Fontaine R., Silva D. & Gonçalves D. 2018. Biologia reprodutiva do pombo-torcaz dos Açores e o seu impacto nas vinhas –Pico/Faial–2016-2017. CIBIO/InBIO Universidade do Porto.
[2] Despachos 1304/2013, 517/2014, 823/2014, 952/2014, 378/2015, 1057/2015, 1556/2023.
[3] Direção Regional do Ambiente e Alterações Climáticas. 2023. Relatório sobre os estragos causados por espécies de aves selvagens.
[4] Dickens, M. & Neves, V. 2005. Post-breeding density and habitat preferences of the Azores Woodpigeon, Columba palumbus azorica: an inter-island comparison. Arquipélago. Life and Marine Sciences 22A: 61-69.



Sem comentários:

Enviar um comentário