25/10/2017

Manifesto pela defesa das aves açorianas e contra a sua caça





MANIFESTO PELA DEFESA DAS AVES AÇORIANAS E CONTRA A SUA CAÇA


Perante a nova Proposta de Decreto Legislativo Regional intitulada “Novo Regime Jurídico da Gestão dos Recursos Cinegéticos e do Exercício da Caça na Região Autónoma dos Açores”, recentemente apresentada pelo Governo na Assembleia Legislativa Regional, as pessoas e organizações ecologistas assinantes querem manifestar:

O seu grande descontentamento pelo facto de não ter sido considerado nem aceite nenhum dos pontos recomendados ao Governo Regional pelas diferentes organizações ecologistas, nos diversos pareceres que aquele previamente lhes solicitou.

A sua surpresa pelo facto desta nova proposta continuar a insistir numas ideias sobre a natureza das ilhas e sobre a actividade cinegética completamente alheias à realidade dos Açores, aparentemente copiadas da realidade que é própria do continente.

O seu grande pesar pelo facto da conservação da natureza ser novamente preterida e esquecida em favor de determinados interesses particulares, ficando novamente a natureza, que é o bem comum de todos os açorianos, subordinada aos interesses de uma minoria de cidadãos.

O seu pesar pelo facto dos Açores perderem mais uma oportunidade de se converterem numa referência internacional no respeito pela natureza e pelo ambiente, em grande contradição com os esforços feitos ultimamente para promover a nossa região como um destino turístico de natureza.

Pensamos que a nova proposta deveria no mínimo contemplar de forma científica e rigorosa as características próprias das espécies que se pretende classificar como cinegéticas. Neste momento a proposta inclui dez espécies, algumas das quais próprias da fauna açoriana e outras não, sem fazer nenhuma consideração a este respeito, à sua abundância, ao seu estado de conservação ou à sua importância ecológica. As espécies incluídas são um mamífero exótico (coelho-bravo), duas aves exóticas (perdiz-vermelha, perdiz-cinzenta), três aves nativas residentes (narceja, galinhola, codorniz), três aves nativas migratórias (pato-real, marrequinha, piadeira) e uma ave talvez nativa ou de origem doméstica (pombo-das-rochas).

Constatamos ainda que na nossa região a actividade cinegética está centrada de forma principal e maioritária na caça ao coelho-bravo, sendo a caça às restantes espécies, todas elas aves, uma actividade claramente minoritária e difícil de justificar quando é considerado o elevado impacto ecológico e ambiental que ela provoca.


O coelho-bravo, uma espécie exótica invasora

O coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus) é o principal recurso cinegético da região. No entanto, na proposta continua a ocultar-se a autêntica realidade desta espécie: o facto de ser uma espécie que foi introduzida nos Açores com a colonização portuguesa, estando desde então presente em todas as ilhas açorianas à excepção da ilha do Corvo. O coelho-bravo não é portanto uma espécie própria dos Açores e, como em muitos outros lugares onde também foi introduzida, na nossa região está classificada como sendo uma espécie exótica invasora.

Como tal, o coelho-bravo é responsável por enormes e permanentes danos na flora açoriana e por ter contribuído em grande medida para a destruição dos habitats e ecossistemas nativos, assim como para a transformação da paisagem original das ilhas. De facto, os trabalhos científicos consideram o coelho-bravo como uma das cem piores espécies exóticas invasoras dos Açores (Silva, Ojeda e Rodriguez, 2008), mas também a nível mundial (União Internacional para a Conservação da Natureza, 2000).

Para além disso, o coelho-bravo provoca enormes prejuízos económicos na agricultura, sendo considerado uma praga em todas as ilhas onde está presente. E é igualmente responsável por diversos outros danos, como os ocasionados sobre as plantas endémicas utilizadas nos programas de repovoamento da floresta nativa.

Sendo o coelho-bravo uma espécie que cria danos irreversíveis no meio natural e uma grave praga para a agricultura, as entidades públicas não devem, como fazem erradamente na actualidade e se reflecte também na presente proposta, promover a manutenção e a renovação das populações desta espécie em liberdade na óptica exclusiva da sua utilização cinegética.

Segundo todos os tratados europeus e internacionais de defesa da natureza assinados por Portugal, é da obrigação e da responsabilidade das entidades públicas reduzir as populações das espécies exóticas invasoras em estado livre até conseguir, tendencialmente, a sua completa desaparição do meio natural.

Os benefícios decorrentes da progressiva desaparição do coelho-bravo, evitando os enormes prejuízos naturais e económicos que origina, seriam sem dúvida muito maiores do que aqueles obtidos na caça.


A obrigação legal de não introduzir espécies exóticas

A perdiz-vermelha (Alectoris rufa) e a perdiz-cinzenta (Perdix perdix), aves próprias do continente europeu, são também espécies exóticas, não pertencentes portanto à fauna açoriana. Apesar de não estarem classificadas como invasoras, como o coelho-bravo, pois até agora não foi demonstrado que criem danos importantes no meio natural, a prática de introduzir espécies exóticas no meio natural é, na actualidade, considerada como um atentado ambiental e contraria toda a legislação nacional e internacional.

Ora, a inclusão na lista de espécies cinegéticas destas duas espécies de perdizes implica necessariamente a intenção de as importar e as libertar no meio natural da nossa região, actuação que, como é dito, contraria claramente as normas jurídicas existentes. Por este motivo estas duas espécies exóticas deveriam ser imediatamente excluídas da lista.


Aves nativas em estado de conservação desfavorável

Existem dados muito preocupantes sobre o estado de conservação e sobre a abundância da narceja (Gallinago gallinago) e da galinhola (Scolopax rusticola), espécies nativas dos Açores que ocupam uns habitats de grande importância ecológica.

Estas duas aves, nomeadamente a narceja, são espécies que se encontram em claro declínio na nossa região, sendo as principais causas da diminuição da sua população a perda do habitat e a pressão cinegética. As populações nidificantes destas espécies são muito reduzidas, no caso da narceja com apenas 278-418 casais para o total dos Açores (Pereira, 2005). E nalgumas ilhas estão já prática ou totalmente desaparecidas.

Devido à sua alarmante situação no nosso arquipélago, perto da extinção, e devido ao tamanho muito reduzido das suas populações e dos habitats que ocupam, estas espécies não atingem as condições de sustentabilidade necessárias para ser consideradas como um recurso cinegético, pelo que deveriam ser excluídas definitivamente da lista de espécies cinegéticas.


Aves nativas migradoras de habitats aquáticos

As três espécies de patos consideradas na proposta, o pato-real (Anas platyrhynchos), a marrequinha (Anas crecca) e a piadeira (Anas penelope), são aves principalmente migradoras que nos Açores ocupam os escassos habitats de água doce presentes na região, como são as lagoas e os charcos de maior dimensão.

Para além dos efeitos que a caça pode ter sobre estas três espécies, o exercício da caça nestes habitats aquáticos provoca uma enorme perturbação e um muito elevado impacto no conjunto da fauna que os ocupa. Nomeadamente sobre um elevado número de espécies de aves migradoras, todas elas protegidas, que ocupam estes habitats e que se encontram já de por si muito enfraquecidas pelo enorme esforço da migração, precisando de uma absoluta calma para se alimentar e poder sobreviver.

A caça nestes habitats constitui ainda um enorme entrave para o turismo de observação de aves, actividade económica em grande crescimento na nossa região. A observação das numerosas espécies migratórias que utilizam estes valiosos meios aquáticos possui um grande interesse turístico, sendo o desempenho desta actividade económica abertamente incompatível com o exercício da caça.

A estes problemas acrescenta-se ainda a contaminação das águas por causa do chumbo dos projécteis utilizados na caça, metal que provoca a doença do saturnismo que afecta a animais e a pessoas. A actual proposta só trata muito timidamente este assunto proibindo a utilização de cartuchos com projécteis de chumbo “aquando da caça em zonas húmidas protegidas” a partir de 2019.

Para além destes impactos ambientais, económicos e ecológicos, deve ainda considerar-se que no passado foram registrados alguns casos de reprodução destas três espécies de patos nas nossas ilhas, o que poderá voltar a acontecer se for eliminada a perturbação dos exemplares e os seus habitats. De qualquer forma, estas três espécies estão presentes nos Açores sempre em números muitíssimo reduzidos, pelo que está claro que também não atingem as condições de sustentabilidade necessárias para ser consideradas como um recurso cinegético e deveriam ser excluídas da lista de espécies cinegéticas.


A caça acidental de espécies protegidas

Das aves classificadas como cinegéticas na proposta, quatro possuem espécies aparentadas, muito próximas, que aparecem também com frequência como migradoras nos Açores: a narceja-americana (Gallinago delicata), o pato-escuro-americano (Anas rubripes), a marrequinha-americana (Anas carolinensis) e a piadeira-americana (Anas americana). Estas espécies aparentadas têm um aspecto muito semelhante às outras, sendo com frequência praticamente impossíveis de diferenciar, mesmo para pessoas com experiência.

Pelo facto de serem quase indistinguíveis, a caça das quatro espécies incluídas na proposta implica inevitavelmente a caça involuntária destas outras quatro espécies próximas, que estão estritamente protegidas e cuja caça é considerada como um delito (a própria proposta propõe uma coima de entre cem e dois mil quinhentos euros para estes casos). Ignorando de forma absurda esta circunstância, a proposta é completamente incoerente nos seus propósitos, convertendo, na prática, espécies protegidas em cinegéticas e caçadores em delinquentes.


Métodos de caça inapropriados

Por ser desnecessária, surpreende a regulamentação nesta proposta de métodos de caça sem nenhuma tradição nos Açores, como são a caça com arco ou besta, ou a caça com aves de presa. Ou também a insistência na utilização do furão ou de negaças vivas em determinados métodos de caça.

A utilização de aves de presa implica a manutenção em cativeiro de exemplares destas espécies protegidas, para os quais será preciso manter custosas instalações que correspondam a umas condições dignas de cativeiro. Para além disso, quando utilizadas na caça, é muito frequente o escape ou perda de exemplares, que são assim introduzidos no meio natural, com todos os riscos que isto comporta.

O furão é também uma espécie exótica invasora que infelizmente já conseguiu estabelecer-se em liberdade nos Açores, sendo a sua utilização na caça a principal causa da sua introdução e presença no nosso meio natural. É portanto de toda lógica a proibição da sua utilização como método de caça.

A utilização de patos e pombos vivos como negaças é eticamente reprovável e parece uma prática completamente desnecessária existindo negaças artificiais. Igualmente cruel e desumana é a autorização feita para, nos campos de treino de caça, largar exemplares de “espécies cinegéticas de cativeiro e variedades domésticas de pombo-das-rochas” para serem mortas “no próprio dia”. Outro método de caça que tem sido igualmente referido pela sua crueldade é a caça a corricão do coelho-bravo, sem utilização de arma de fogo.

Ainda, o texto da proposta resulta confuso quando, sem diferenciar entre espécies exóticas ou nativas, fala de “correcção de densidade” de espécies cinegéticas. O controlo populacional pode fazer sentido referido a espécies exóticas invasoras como o coelho-bravo, mas não é aplicável directamente às espécies nativas, que contam com a sua própria regulação natural dentro do ecossistema.


Actividade duma minoria financiada publicamente

O Governo Regional, através dos Serviços Florestais, está já a criar, ou pretende criar, exemplares de codorniz, perdiz-vermelha, perdiz-cinzenta e pato-real para os libertar no meio natural com a finalidade de potenciar o exercício da actividade cinegética. Custa perceber a razão pela qual tanto dinheiro, equipamentos e funcionários públicos são utilizados para benefício da minoria de pessoas que pratica este tipo de caça.

Como já foi referido, esta situação é grave nomeadamente no caso da perdiz-vermelha e da perdiz-cinzenta, que são espécies exóticas que nunca deveriam ser introduzidas no meio natural, e ainda menos por uma entidade governamental. Da mesma forma que é também incompreensível a actual cria e libertação nas ribeiras e lagoas dalgumas ilhas açorianas, por parte dos Serviços Florestais, da truta-arco-iris, também ela considerada como uma das cem das piores espécies exóticas invasoras a nível mundial.

O escasso benefício destas actividades minoritárias, altamente subsidiadas, contrasta claramente com o impacto negativo que exercem sobre outras actividades económicas muito mais importantes para a nossa região e para a maioria dos açorianos, como é por exemplo o turismo. Um impacto que resulta ainda maior quando a caça é praticada na proximidade dos trilhos pedestres, levando a evidentes riscos para a segurança dos praticantes do pedestrianismo, ou também quando se pretende abrir o período venatório ainda nos meses do verão, quando há grande presença de turistas.


A necessidade duma nova proposta legislativa

Por todas as razões citadas, é necessária uma viragem na política praticada até agora à volta da actividade cinegética nos Açores. Esta prática deve ter uma correcta adequação à realidade açoriana, com uma necessária modernização dos conceitos e uma reconfiguração dos seus objectivos. É igualmente imprescindível valorizar a fauna açoriana frente a determinados interesses económicos elitistas, apostando claramente em sectores económicos de futuro, compatíveis com o respeito integral pelo ambiente e pela natureza.

Como conclusão, deve exigir-se a retirada da actual Proposta de Decreto Legislativo Regional feita pelo Governo Regional e a sua reformulação numa nova proposta que considere um maior grau de conhecimento científico, o cumprimento dos tratados internacionais e um maior cuidado e respeito pela sempre frágil, única e irrepetível natureza dos Açores.




ASSOCIAÇÕES E GRUPOS ECOLOGISTAS:

Amigos dos Açores – Associação Ecológica
Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza / São Miguel
Coletivo Açoriano de Ecologia Social
Avifauna dos Açores


APOIOS INDIVIDUAIS (>350 pessoas):

Plataforma change.org: ver aqui






Sem comentários:

Enviar um comentário